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Trampo dos sonhos? A rotina dos mergulhadores saturados


    Caio Palazzo




Câmara de saturação para profundidade





Sobrevivência. Enquanto chora, o mergulhador recorda da vez em que seu compadre e parceiro de câmara socorreu sua esposa grávida após o rompimento da bolsa. “Ele chegou antes de mim em terra e disse para não me falarem nada até eu voltar à superfície”, lembra ele.


Para muitos, o alto preço do quase cárcere vale a recompensa. A cada saturação de 28 dias, o mergulhador ganha cerca de R$ 32 mil, praticamente dez vezes seu salário mensal – mas, por lei, só é permitido fazer quatro mergulhos desse tipo por ano. Em pouco tempo no emprego, Zozo comprou um apartamento mobiliado, trocou de carro e passou a frequentar restaurantes caros. Alguns colegas não mantêm o prumo. O dinheiro vai embora com tatuagens, viagens, festas e mulheres – e o mergulho torna-se um vício perigoso. “Tem cara de 50 anos que faz saturação e não tem uma casa”, diz ele.


Fôlego de sobra


Apesar dos excessos de outros mergulhadores do gênero, Adalberto Barbosa da Silva está há muito tempo na linha. Com 67 anos, se diz o mais velho mergulhador saturado em atividade no Brasil. Desde 1978, ADB, como é chamado pelos companheiros, deixa a família em terra e parte para o confinamento. O mergulhador teria direito a aposentadoria especial após 25 anos de serviço, pelo grau de insalubridade da função. Em vez disso, deu entrada na previdência social com 30 anos de carteira e continuou a mergulhar. “Só assim para conseguir manter um padrão de vida de classe média alta”, afirma.


Barbosa já chegou à marca de 316 metros de profundidade, uma das mais extremas já alcançadas no mundo. “Hoje em dia eu não sinto nada diferente nos mergulhos: não fico com ansiedade ou com alguma coisa no peito”, diz. Quando começou na profissão, o único contato com o mundo era via rádio.


Atualmente, há câmaras equipadas com televisão e computador com internet. A tecnologia das ferramentas de trabalho também evoluiu, mas os problemas de saúde nos sinos e nas câmaras de mergulho persistem. Por conta da alta pressão, o ar atmosférico é substituído por soluções chamadas Heliox ou Trimix, nas quais o nitrogênio é trocado por hélio – ao mesmo tempo, herói e vilão da saturação.


Um mar de problemas


Sem o hélio, os mergulhadores seriam embriagados em um processo denominado narcose (em que o nitrogênio é absorvido pelos tecidos do corpo e passa a retardar os impulsos nervosos). A absorção do gás substituto do nitrogênio, no entanto, deixa a voz mais aguda e o paladar menos apurado. As refeições, entregues periodicamente através de uma pequena antecâmara, ganham gosto metálico. “Você leva sua


pimenta de casa e um quer ter a pimenta mais forte que a do outro”, conta Zozo. Além disso, o hélio dificulta a regulagem térmica do ambiente, tornando comum discussões sobre a temperatura. Como adicional, a umidade nas câmaras facilita o ataque de bactérias e fungos à pele, às unhas e aos ouvidos, como afirma o doutor Ricardo Vivacqua, um dos maiores especialistas em medicina hiperbárica do país.


Segundo ele, a situação ruim seria pior sem o sistema de confinamento. A câmara evita as doenças descompressivas. Causadas pelo escape de gases das células, elas podem levar à morte. “Quando você volta muito rápido à superfície, a pressão é diminuída e o gás forma bolhas no corpo”, explica ele, comparando a reação a uma garrafa de refrigerante quando aberta. Dos 28 dias confinados, cerca de dez deles são dedicados a dessaturação (o retorno à pressão superficial), segundo Vivacqua.


O médico já sentiu no próprio corpo a pressão a que os operários saturados são submetidos. Um mergulhador quebrou a perna durante uma operação de manutenção e, como não podia sair da câmara, teve de ser socorrido por Vivacqua do lado de dentro. “Saturei e montei um mini-Centro de Tratamento Intensivo na câmara”, diz o médico, responsável por avaliações constantes dos mergulhadores da Bacia de Campos (Rio de Janeiro). Ele reconhece que atualmente as doenças por descompressão são raras, superadas pelos problemas psicológicos. “Não é qualquer um que aguenta esse confinamento, o cara tem que ter uma cabeça muito boa”, diz.


"Não é qualquer um que aguenta esse confinamento, o cara tem que ter uma cabeça muito boa", diz o médico Renato Vivacqua, especialista em mergulho saturado

Todos os mergulhadores saturados atendidos por Vivacqua são contratados da Fugro, empresa que, atualmente, está sozinha na realização dessa atividade no Brasil, sendo terceirizada pela Petrobras. “Qualquer setor com só uma empresa no mercado cai em qualidade de serviço e funcionários”, afirma Nélio César de Almeida, membro do conselho fiscal do Sintasa, sindicato da categoria, e mergulhador experiente que abandonou a atividade com dores na coluna. Máquinas são utilizadas em algumas atividades ou em profundidades maiores que 300 metros, mas ainda não substituem o humano. “O robô faz o feijão com arroz”, diz Sandro Zozo. Após o acidente em 2012, ele não consegue mais entrar em um sino de mergulho. Tudo o que quer é mudar de função dentro da Fugro (discussão que está na justiça). Trip entrou em contato com a empresa, mas ela não se manifestou até o fechamento desta edição. Abalado, Zozo não topa nem colocar a máscara na cabeça para a sessão de fotos desta matéria. Ainda carrega a pressão de quem escapou da morte no fundo do mar.

Formação não saturada

Faltam cursos de especialização tanto para os mergulhadores quanto para os médicos que cuidam deles

“Deus é brasileiro e hiperbaricista.” Renato Rocha-Jorge (foto à dir.) toma a frase emprestada de um amigo para definir o mergulho no país. Ele é um dos sócios da Divers University, um dos poucos centros que ofereciam curso de mergulho saturado no Brasil. Atualmente, a formação na área é ministrada apenas pela Marinha no Centro de Instrução e Adestramento Almirante Áttila Monteiro Aché (Ciama).

Ainda que restrita, a formação está aquém de padrões europeus, segundo Rocha-Jorge. “O mergulho brasileiro é amador”, diz ele. A norma reguladora da atividade, a NR-15, está defasada em 30 anos, enquanto o seu equivalente das Forças Armadas, a Normam, nem sempre é utilizado nos navios. A medicina específica também sofre. “Nem todo médico sabe tratar um mergulhador”, afirma Irene Demetrescu, instrutora da DAN, associação internacional dedicada à segurança de mergulhos recreativos. “A medicina hiperbárica não é tratada como especialidade, mas, sim, como área de atuação”, diz.


Fonte: http://revistatrip.uol.com.br/revista/228/reportagens/pressao-alta.html





Perigo em alto-mar


Mergulhadores da Bacia de Campos
enfrentam uma arriscada rotina

Ricardo Fasanello










Alan Swenson (à esq.), 
Rubens Alexandre e Marcos Antônio:
elite Viagem ao fundo do mar







O mergulhador Marcos Antônio Vieira, 42 anos, reparava um duto de petróleo. A escuridão à sua volta era rompida apenas parcialmente com o auxílio de um robô que iluminava um imenso cardume orbitando ao redor da estrutura metálica e transmitia imagens para a sala de controle do navio, mais de 200 metros acima. Marcos usava o capacete impermeável equipado com lanterna e sistema de comunicação. O macacão de neoprene, largo no corpo para permitir a circulação da água quente que vinha pelo tubo conectado à superfície, dificultava os movimentos. A resistência física era drasticamente reduzida pela pressão atmosférica mais de vinte vezes maior. De repente, o susto.

Um peixe enorme, de estimados 200 quilos, abocanhou ferramenta, mão e braço de Marcos, até a altura do cotovelo. Felizmente, tudo não passou do susto. Marcos retirou o braço da boca do peixe, um inofensivo cherne que, em seguida, cuspiu a ferramenta. Ele concluiu o serviço e começou a longa viagem de retorno. Marcos é um dos oitenta mergulhadores de enormes profundidades que trabalham na manutenção de alguns dos 600 poços de petróleo, explorados por 41 plataformas, na Bacia de Campos. A empresa extrai óleo de poços a até 1 800 metros de profundidade. Nesses casos, a operação é toda automatizada. Mas um quarto dos poços fica a até 300 metros e, nestes, o trabalho dessa elite de mergulhadores é fundamental. No Brasil, há apenas duas companhias especializadas em mergulho de alta profundidade – estima-se que sejam apenas 25 em todo o mundo –, a Fugro Oceansat e a Acergy Brasil, ambas contratadas pela Petrobras para operações na Bacia de Campos.

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Sustos como aquele de Marcos são comuns no trabalho, mas não são a maior preocupação dos mergulhadores. O tamanho do peixe, aliás, pouco significa em termos de perigo e dor. Outro mergulhador, o também surfista Renato Bellizzi, 39 anos, sofreu muito mais, vítima de um peixe infinitamente menor. Tão pequeno que ele só percebeu a presença do animal quando pisou nele. Era um peixe venenoso que estava escondido sob um duto. "O espinho perfurou o neoprene da bota e furou meu pé. Na hora, foi uma dor alucinante, e eu não sabia exatamente o que era." Bellizzi conseguiu voltar para a câmara e foi medicado. Peixes podem causar graves problemas, mas para os "astronautas" do mar, como eles são conhecidos, a principal preocupação é o equipamento. No mergulho raso, aquele mais comum, atingem-se profundidades de até 50 metros com o auxílio de um cilindro de ar comprimido, uma mistura de oxigênio e nitrogênio. Abaixo dessa profundidade, mudam as regras e os equipamentos. E os riscos aumentam consideravelmente. O trabalho de apenas uma dupla de mergulhadores desencadeia uma complexa operação que envolve dezenas de profissionais.

Ainda no navio, os mergulhadores são pressurizados de acordo com a profundidade em que vão trabalhar, nas chamadas câmaras hiperbáricas. Ali, passam a respirar uma mistura dos gases oxigênio e hélio. A primeira mudança no comportamento dos mergulhadores está mais para a comédia do que para o drama. Logo que começa a pressurização, os mergulhadores passam a falar com aquela voz de pato de desenho animado, por causa da ação do gás hélio no organismo. Na hora do trabalho, uma dupla de mergulhadores sai da câmara hiperbárica por uma escotilha e entra na cápsula conhecida como sino, que é lançada ao mar através de um túnel no centro do navio. Quando o sino chega à profundidade demarcada, um dos mergulhadores sai pela escotilha na parte inferior da cápsula, enquanto o outro permanece lá dentro. Após um máximo de seis horas de mergulho, o sino é recolhido, e a dupla volta para a câmara hiperbárica no navio.

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Para ficar horas trabalhando no fundo do mar, sob temperaturas que chegam a 6 graus, o traje é aquecido por água quente bombeada do navio por intermédio de um tubo – chamado de cordão umbilical. "Se há uma interrupção no fornecimento da água quente, começa o choque térmico, e o mergulhador tem alguns minutos para voltar ao sino antes de entrar em hipotermia (diminuição drástica da temperatura corporal)", frisa o mergulhador e surfista Robson Gitti, 42 anos, que já enfrentou o problema. A mangueira de água quente se desconectou do traje, mas ele rapidamente a reconectou. "É uma profissão dificílima, perigosa. Mas o que me fascina é a oportunidade de estar em um lugar onde pouquíssimas pessoas neste planeta vão chegar", diz Gitti.

A experiência tem um preço. Os mergulhadores são obrigados a viver numa espécie de regime de prisão semi-aberto. A câmara hiperbárica é um cilindro metálico, com 2,5 metros de raio e 6 de comprimento. No interior ficam dois beliches, uma mesa de aço inoxidável e duas fileiras de poltronas, assento e encosto feitos num colchão emborrachado laranja com 10 centímetros de espessura. A câmara é revestida de uma tinta verde-água e repleta de válvulas e tubos. O aspecto é frio, com cheiro de hospital, o lugar é pequeno e quatro mergulhadores permanecem confinados ali durante 28 dias. Saem para mergulhar e voltam direto para a câmara. "É um Big Brother levado ao limite extremo", define Carlos Paschoal, superintendente de mergulho da Fugro Oceansat.

A TV fica do lado de fora da câmara e tem apenas 14 polegadas, para poder ser vista através da escotilha de vidro. Não é permitida a entrada de equipamentos elétricos por risco de combustão provocada por fagulha. Apenas o telefone e o alto-falante da TV ficam dentro da câmara. Os mergulhadores precisam de auxílio externo para tudo: tomar água gelada, mudar o canal da TV, acionar a descarga do banheiro. Se houver um problema grave e o mergulhador tiver de sair da câmara, o supervisor autoriza o procedimento. Mas nada acontece de imediato. Se o mergulhador estiver pressurizado, por exemplo, para uma profundidade de 300 metros, ele vai precisar passar por um período de dez dias de descompressão.

Big Brother: sala de controle monitora mergulhadores 24 horas


Para evitar crises dentro da câmara, os parentes evitam relatar problemas mais sérios nas conversas com os mergulhadores. Em um caso, a descompressão foi antecipada, e, ao sair da câmara, o mergulhador recebeu a notícia: o filho havia morrido e já estava enterrado. Em outra situação, a má notícia chegou ainda dentro da câmara. O mergulhador ligou para a mulher e quem atendeu foi o amante. O marido pediu imediatamente para sair da câmara. "O cara ficou louco, parecia um siri na lata. É uma preocupação constante saber que você está preso e o 'Ricardão', solto", diz um colega do mergulhador. "O confinamento, a sensação de isolamento, afeta muito o aspecto emocional dos mergulhadores", avalia Ricardo Vivacqua, médico responsável pelo atendimento aos profissionais da Fugro Oceansat. O aspecto físico é outro ponto muito exigido. "Há mergulhadores que perdem 4 quilos em apenas um dia de mergulho", conta Cláudio Street, médico da equipe da Acergy Brasil. As duas empresas realizam exames semestrais de todos os mergulhadores do quadro. Em caso de acidentes graves, os médicos são levados ao navio e pressurizados para atender o paciente ferido. "O mergulho profundo é como a Fórmula 1 ou uma viagem espacial. São atividades extremamente perigosas, mas com os riscos muito controlados", frisa Cláudio. A boa notícia é que, nos últimos dez anos, não há registros de mortes ou acidentes graves com mergulhadores das companhias contratadas pela Petrobras.

Mesmo no fundo do mar, os mergulhadores acompanham as novidades do mundo aqui na superfície. Durante a Copa do Mundo de 1994, Marcos Antônio estava a quase 300 metros de profundidade quando Branco marcou, de falta, o gol contra a Holanda que levou o time brasileiro à semifinal e ao título. A informação chegou até ele pela voz do supervisor, via rádio. Marcos comemorou com um sorriso e pouco mais. Em junho, ele vai repetir a experiência. Estará confinado entre a câmara hiperbárica e o fundo do mar quando o campeonato se realizar. Marcos, como todos aqui fora, torce para comemorar muitos gols brasileiros, mesmo que com voz de Pato Donald.


Mergulho profundo





80 mergulhadores em todo o Brasil, todos homens, realizam o trabalho em águas profundas
O mergulhador fica 28 dias confinado num cilindro de compressão e descompressão de 2,5 metros de raio por6 metros de comprimento
Para que ele alcance 200 metros de profundidade, o processo de compressão dentro da câmara dura 18 horase a descompressão se estende por 7 dias
O salário de um mergulhador varia entre 4 000 e 8 000 reais, de acordo com sua experiência
A Bacia de Campos tem 600 poços produtores de petróleo e 4 700 quilômetros de dutos
Os mergulhadores prestam assistência em 144 poços da região


Viagem ao fundo do mar



1ª etapa ­ Na câmara hiperbárica, instalada dentro do navio, mergulhadores são adaptados à pressão atmosférica de uma profundidade determinada
2ª etapa ­ Uma dupla de mergulhadores entra no sino, que é lançado ao fundo. Ao chegarem ao ponto marcado, um deles sai da cápsula e segue até o local de reparo do duto
3ª etapa ­ O mergulhador termina o serviço, volta para o sino, retorna ao navio e permanece na câmara hiperbárica aguardando a próxima missão no fundo do mar.





O mergulhador sai pela escotilha na parte inferior do sino......pisa sobre o lastro de proteção do sino e checa o equipamento...
...caminha pelo fundo do mar preso ao tubo com água aquecida......e procura a ferramenta ideal para iniciar o reparo planejado


Trabalho sob pressão






Fotos Ricardo Fasanello/Strana




A foto acima foi tirada através da escotilha de vidro de uma das câmaras hiperbáricas do navio Acergy Harrier.O cômodo da foto é uma sala e a escotilha fechada no canto direito dá acesso a uma outra câmara equipada com dois beliches. Há ainda um compartimento menor(abaixo), também isolado por escotilhas, com vaso sanitário, chuveiro e pia. Uma equipe na sala de controle monitora cada movimento dos quatro mergulhadores da foto.


Os remédios, refeições ou livros são repassados por uma pequena câmara que pode ser pressurizada e despressurizada em poucos minutos. Dentro da câmara há um telefone e um alto-falante conectado à televisão, que fica do lado de fora. Até para mudar o canal da TV, eles precisam de ajuda externa.



Fonte: http://veja.abril.com.br/vejarj/240506/capa.html



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